Dançar com Fantasmas [Tutu]



FIMFA – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas
Teatro-Estúdio Mário Viegas, 14 de Maio de 2016

Vindos da Holanda, (...) a companhia de teatro Lichtbende chega a Lisboa integrada na programação do FIMFA Lx 2016. Dedicado ao trabalho com luz e sombra e sua articulação com música ao vivo, este colectivo trabalha com lanternas mágicas, criando um ambiente fantástico que evoca os primórdios da arte do cinema, ao mesmo tempo que presta homenagem ao cientista holandês Christiaan Huygens, a quem foi atribuída a invenção destes dispostivos em 1659.

O espectáculo com que agraciaram o público português foi criado em 2014 e tem circulado desde então por inúmeros festivais nacionais e internacionais. Tutu conta-nos a história de uma criança que cresceu nos anos 30 e alimentava o sonho de ser bailarina. Construído a partir de uma comovente fotografia, projectada no início do espectáculo, de uma menina que segura a sua boneca bastante velha e estragada, Tutu é um convite para uma viagem pela dança dos anos 30 e 40, atravessando momentos marcantes desse conturbado período da história mundial.

Inspirado por fragmentos de filmes, personalidades da dança, gravações musicais e movimentos artísticos das primeiras décadas do século XX, o espectáculo remete para importantes referências da história da dança e do seu percurso estético (do sapateado ao Ballroom): de Anna Pavlova (1882 – 1931) a Oskar Schlemmer (1888 – 1943), passando por Mary Wigman (1886 – 1973), Josephine Baker (1906 – 1975) e Shirley Temple (1928 – 2014). Apesar desta multiplicidade de referências não provocarem especial eco nos mais novos, elas garantiram a satisfação dos mais velhos, concretizando a promessa da companhia: “para público dos 6 aos 106”.

O grande encanto desta construção é a elegante articulação entre a música ao vivo e o jogo de luz e sombra criado pelas projecções das lanternas mágicas. Estes magníficos objectos são o grande instrumento de trabalho dos Lichtbende (“A quadrilha da luz” traduzindo literalmente): umas têm mais de 100 anos, outras são adaptadas e actualizadas, outras reflectem ainda um reajuste da técnica japonesa Utsushi-e. A partir delas, o espectáculo desenha-se entre anseios e afectos entrelaçados na música e na dança, transformando-o numa narrativa flutuante e ritmada, dotada de grande fluidez. A construção narrativa, baseada na sucessão de momentos aos quais correspondem um género tanto musical como de expressão corporal, não cria um ambiente fragmentado, mas antes um sentido episódico da vida dessa rapariga que se torna mulher.

Este espectáculo é assumidamente influenciado pelo conto de Hans Christian Andersen, Os sapatos vermelhos, através dos quais somos conduzidos pelo universo e experiências da protagonista. Com apenas cinco milímetros, os pequenos sapatos deambulam pela tela como uma aparição, não necessitando do resto do corpo para se exprimirem livremente e apelar à imaginação. Relacionado com o pensamento em torno das imagens em movimento dos primórdios do cinema, o espectáculo assume claramente a relação referencial com o que está ausente da imagem e declara uma intenção metonímica na representação, sublinhando o carácter fantasmagórico e espectral que é muitas vezes convocado para pensar as imagens cinematográficas do final do século XIX e início do século XX. As crianças contemporâneas, embora imersas na era tecnológica do automatismo, responderam a este desafio analógico com extraordinário encanto, ultrapassando a estranheza inicial da imagem animada de uma forma que não conhecem e os momentos mais assustadores (em especial na cena que invoca a dança expressionista e a coreógrafa Mary Wigman), e reconhecendo temas tão negros como a pobreza, a guerra, a morte ou a imigração, com grande perspicácia e compaixão. A exploração destes delicados temas é conseguida com graciosidade, não demonstrando qualquer condescendência para com o espectador infantil e garantindo a leveza necessária a um espectáculo concebido para este público.

Nas extremidades do pequeno palco do Teatro-Estúdio Mário Viegas encontramos os músicos, rodeados dos vários instrumentos e objectos que são tocados durante o espectáculo e, em frente da grande tela que cobre o fundo da cena, estão distribuídos os vários tipos de lanternas mágicas que são usadas para contar esta história. Assim, à vista dos espectadores que são depois convidados a conhecer melhor estas máquinas, vemos todas as movimentações dos manipuladores / projeccionistas e os dispositivos a que correspondem as várias técnicas de projecção apresentadas.

O extraordinário desempenho dos intérpretes e da música faz com que pequenos e graúdos dancem nas cadeiras e se divirtam com esta incursão pela dança da primeira metade do século XX. Apesar da ausência da palavra, as pequenas figuras estilizadas de arame e botões (concebidas a partir de materiais reciclados), encontram na composição musical uma fonte de grande expressividade que concretiza esta experiência plástica tão próxima de um filme animado.

A transversal evocação do passado que se faz sentir desde o emprego de objectos vintage – como as lanternas mágicas e o gramofone –, à ilustração do período histórico da vida da menina, evidencia uma preocupação em recuperar a memória daquela época e garantir a preservação destes objectos, ao mesmo tempo que confere um carácter testemunhal à vida da personagem. Tutu é um espectáculo cinematográfico e musical que convoca o passado para mostrar aos mais jovens técnicas e realidades que lhes parecem longínquas ou até mesmo desconhecidas. É uma viagem no tempo através dos sonhos de uma bailarina, que evidencia uma perspectiva marcadamente educativa do teatro e da música e faz o elogio às técnicas de projecção de imagem em movimento e suas potencialidades narrativas.