Objetos e habitats: agregados do corpo [Objecto Encontrado Perdido]



FIMFA – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas
Teatro Taborda, 10 de Maio de 2016

Nas casas, os objetos são portadores de marcas do tempo. Fixam, materializam, simbolizam acontecimentos, passando do utilitário ao evocativo. Quando ocupamos um espaço colocamos objetos que se conjugam pelas suas funções e representações. O Teatro de Ferro mudou de casa. O espetáculo Objecto Encontrado Perdido leva-nos a interrogar os sentidos de habitar, transitar e fixar territórios através das coisas. Num trabalho de pesquisa, experimentação e reflexão, explora-se a articulação entre corpos e objetos, alguns resgatados de outros espetáculos da companhia, outros encontrados em mudanças. Uma mala de viagem passa num corredor rolante. Um carrinho de brincar é manipulado por arames. Taças que representam vitórias do passado acabam amontoadas e esquecidas. A matéria surge como vestígio de memórias e de territórios, evocando lugares de pertença.

Os objetos deslocados das suas funções e agregados aos corpos dos atores invadem o palco, saindo de cena progressivamente, como quando esvaziamos e ocupamos uma casa. Em certos momentos desfilam apresentados à boca de cena e partem tão rapidamente como chegam: o braço de um manequim, um extintor, um radiador, um altifalante, um guarda-chuva. Por entre os objetos perdidos e abandonados, há materiais que se impõem, mostrando resistência em partir. E há ainda objetos sonhados e imaginados. Duas mãos manipulam uma marioneta imaginária ou a ausência dela. Brinda-se sem copos. Pousa-se uma cabaça e mantém-se o volume da mesma no corpo, como se ainda fosse transportada. Abre-se uma garrafa e verte-se o champanhe na mão que segurava um copo ausente. Os objetos mantêm-se presentes nos corpos que materializam a sua ausência. Com corredores rolantes, bobinas e materiais que aludem ao cinema mudo e aos Tempos Modernos de Chaplin, não podemos deixar de refletir acerca da carga simbólica dos objetos e do seu sentido no frenesim do excesso, do desperdício e do consumo desenfreado. O movimento dos intérpretes evocando em alguns momentos o gesto da pantomima reflete os desajustes de um ritmo mecânico. Os seus corpos parecem por vezes fragmentados, desmembrados, parcialmente marionetizados (um braço surge manipulado, desagregado do corpo).

Num espetáculo que explora as diferentes possibilidades de hibridismos da marioneta, a partir do teatro físico e visual, mantém-se um questionamento da ideia de manipulação subjacente. Grande parte dos materiais são usados na construção e manipulação de marionetas: madeira, ferro, arame, varas, gesso e moldes de marionetas. Uma das imagens mais frequentes é o fio: o fio que pende de uma vara, os fios de um projetor. Aglomerados de membros em pêndulos suspensos descem a um estirador para serem reconstruídos e manipulados. Quem manipula quem? Onde estão as fronteiras e os prolongamentos dos dois corpos? A matéria surge como prótese do corpo ou o inverso? Experimentam-se diferentes possibilidades para expressar o envolvimento corporal do manipulador e o modo como a matéria transforma o corpo, ele próprio matéria em movimento e produtor de imagens. Um corpo entra numa caixa de madeira. O objeto seja ele abrigo ou túmulo surge como invólucro do corpo. Com um alguidar exploram-se diferentes gravidades e posturas: inicialmente erguido na cabeça, com a outra mão na anca a lembrar as lavadeiras antigas, desloca-se na anca, diante do ventre, nas costas, mudando os pontos de apoio e por conseguinte as suas representações. A matéria torna-se incluída no esquema corporal como um artefacto.

Os corpos por vezes marionetizados vão por sua vez humanizar o objeto ou simplesmente desviá-lo das suas funções originais. Trocam-se objetos e os seus simbolismos: uma espingarda, um martelo, um livro, um machado. Penas de pavão servem o ato da escrita para depois surgirem como ornamento decorativo, desaparecendo lentamente. Um pneu e uma garrafa surgem suspensos por um fio. Noutros momentos conjugam-se em estruturas e aglomerados de  materiais de construção. As matérias primas misturam-se com objetos quotidianos. Os corpos transitam carregando e descarregando mercadoria, parecendo ser também transportados pelos objetos. Movem-se por momentos em ruínas cohabitando com a música (por vezes em sintonia, outras em contraste) e  com os ruídos da matéria, também ela produtora de som.

Partilhamos também um habitat comum neste espetáculo, onde o nosso reflexo surge evocado no espaço cénico em painéis com silhuetas de cabeças, representando as sombras dos espetadores. Reflexo que se aproxima de nós ao longo do espetáculo, à medida que os painéis avançam na direção da plateia, numa tentativa de manipulação do espaço cénico. Um habitat é um lugar de onde se olha. Moramos acima de tudo no nosso corpo e sabemos que o corpo não termina à superfície da pele, englobando e apropriando-se dos elementos exteriores para sentir através deles e interagir com o mundo. Com este espetáculo descobrimos outros modos de cohabitar com os objetos e percebemos que se calhar há objetos que também nos habitam.