A alegre biografia de um psicopata [Barba Azul]



FIMFA – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas
Teatro Taborda, 7 de Maio de 2016

O espectáculo Barba Azul, do Teatro de Marionetas do Porto, é uma versão alternativa e adoçada do conto homónimo de Charles Perrault, publicado pela primeira vez em 1697.

Na conversa posterior ao espectáculo o autor, encenador e intérprete, Rui Queiroz de Matos, confidenciou ao público que a história sanguinolenta e trágica de Barba Azul era a sua preferida na infância e que, por isso, pedia à sua mãe que lha contasse repetidamente. No entanto, para bem do sono dos pequenos petizes portugueses, a versão que agora apresenta ao público deixa de fora os homicídios e o assassino em série que o cativou e põe em cena uma sucessão de personagens bem-dispostas e episódios divertidos que não só agradam ao público infantil, como lhe suscitam o riso e a admiração, no lugar do horror ou do choro (bom, este último, talvez ocasionalmente, nas almas menos treinadas para a ilusão teatral…).

Sobre o pequeno palco do Teatro Taborda, uma estrutura arredondada faz as vezes de tablado das pequenas marionetas, com pouco mais de meio metro, que, sem mais artifícios que a movimentação dos braços, pernas e cabeça, expressam toda a gama de sentimentos humanos, pelas mãos, vozes e gestos dos intérpretes. Os marionetistas, por detrás desta estrutura semelhante a um balcão, vão servindo ao público a história de Barba Azul, desde o seu nascimento – estranho bebé careca, de “monocelha” e pêra azul no queixo – até à maturidade, em que os negócios da família o obrigam a tomar conta dos pais e a arranjar esposa.

Barba Azul é um homem triste, descontente com a vida, acompanhado desde a infância por um psicólogo, que explica a sua personalidade pela falta de amor parental. Sofre de “cólicas emocionais”, “alergias a muitas companhias”, bipolaridade e é muito, muito feio. No entanto, estes problemas não lhe fecham o coração e é com alguma celeridade que desposa Capuchinho Vermelho, depois de esta o apanhar atrás de uma moita “à procura de wi-fi“. O casamento não dá certo devido à natureza mandona de Capuchinho, insuportável para Barba Azul, que com um excelente pontapé a projecta para fora de cena.

Seguidamente, os olhos semicerrados de Aurora, a Bela Adormecida, trazem novos palpites amorosos ao seu coração e instantaneamente o casamento tem lugar. A celeridade do acto contrasta com a dormência da esposa – Aurora sofre de narcolepsia, o que desgosta Barba Azul, que pretende uma esposa desperta. Também esta personagem sairá disparada da sua vida. Seguem-se outras figuras femininas dos contos de Perrault, umas mais conhecidas, outras menos, que irão dar corpo às esposas do famigerado barbudo colorido.

O aparecimento de cada noiva no palco lembra um jogo de computador: tendo como fundo a música monofónica sintetizada da autoria de Pedro Cardoso (autor de toda a música do espectáculo), surgem as bonecas que caminham sem sair do lugar, cada uma com os seus gestos repetitivos, ao ritmo de uma melodia que traz à memória os jogos do ZX Spectrum. A música pára, as marionetas ficam paralisadas no ar e uma voz off anuncia o seu nome. De tal maneira a entrada em cena das noivas leva o público para o salão de jogos, que a cada nova aparição surgem da plateia algumas vozes: “É a Carochinha…”, “É a Bela Adormecida…”, “Acertei.”, como se de um concurso se tratasse.

A interacção com o público não é procurada de forma exaustiva, mas a grande expressividade de cada um dos intérpretes (Rui Queiroz Matos, Micaela Soares e Vasco Temudo) dá azo a que comunicação com a plateia surja quer através das marionetas, quer do seu próprio gesto e discurso.

O espectáculo é acompanhado de canções que sintetizam cada episódio e também de um jogo de luzes e vídeo mapping que transformam o palco em vários cenários, enfatizam emoções e ilustram acções. O ambiente sonoro é também fundamental na recriação de ambientes, principalmente os mais assustadores.

O diálogo das personagens é escorreito e informal, tal como o tom em que é proferido, tornando-o acessível a miúdos e graúdos, e permitindo ao público embarcar facilmente na narrativa que nos é apresentada pela tripulação das Marionetas do Porto, atracada em Lisboa, no FIMFA – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas.

A moral da história deste Barba Azul não difere da do original: não devemos desprezar os nossos semelhantes. Contudo, a forma como se apreende essa lição não é através do pavor das personagens “cortadas às postas”, mas sim de uma narrativa lúdica e de um elenco de figuras que nos é emocionalmente próximo.

No final do espectáculo, um jovem membro do público ficou bastante desiludido ao saber que as marionetas, afinal, não voavam sozinhas e que eram os marionetistas que as levantavam no ar. Para ele deixou de haver magia. Mas a verdade é que a magia permanece, mesmo vendo os truques todos. Porque é ou não extraordinário sairmos de uma sala de teatro contentes depois de 50 minutos a olhar para o boneco?!